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A vivência de ser um cuidador familiar

A família funciona, na maioria dos casos, como uma totalidade, onde cada indivíduo desempenha um papel que irá influenciar no todo. A partir do momento em que um membro desse grupo adoece e não cumpre mais esse papel definido, a organização anterior sofre uma alteração que desencadeia uma crise, obrigando à reestruturação de papéis. Relações conjugais e relacionamentos entre pais e filhos envolvem uma complexa rede de sentimentos que funciona de modo circular na tentativa de manter um equilíbrio. Quando um desses sujeitos adoece, cuidar pode ser uma forma de manter um vínculo. Em estudo realizado com um grupo de cuidadores no Rio Grande do Sul, os entrevistados referiram ter assumido o cuidado por obrigação matrimonial, e isso ocorria até com os idosos que não eram casados, mas que viviam juntos. Se o cônjuge não pode realizar o cuidado, o papel é assumido pelos filhos, mas também por outras figuras como os netos.

A família, diante do idoso necessitado de cuidado ao longo da vida, pela cronicidade de sua situação de saúde, vivência sentimento de culpa, frustração, amor e solidariedade, experimentando um processo de construção da aceitação do fato que atravessa os caminhos da negação, entrega à dor, podendo gerar depressão e suas consequências deletérias. A perda da identidade do cuidador pode acontecer, pois o idoso altera o seu papel na família, ocasionando novas ações a serem assumidas pelo familiar. “A mudança drástica nos relacionamentos ameaça o self até que se descubram outras maneiras de viver”. Vale destacar também que a carência, ou até mesmo a ausência do cuidado por uma dessas partes, pode ser fruto de relacionamentos e vínculos desfeitos por situações desagradáveis ou até mesmo vínculos que nunca chegaram a se estabelecer. Através da experiência com um grupo de cuidadores familiares de idosos dependentes no ambulatório do Núcleo de Atenção ao Idoso (NAI), foi descrito em 2000 o perfil dos cuidadores como sendo pessoas engajadas na solução dos problemas, sendo mais comuns os casos de monopolização da função do cuidador.

O familiar que direciona para si todas as atividades relacionadas ao cuidado pode manifestar sentimentos de desconforto e solidão pela falta de apoio dos familiares, gerando uma crise no seu desempenho, “em que a habitual relação de afeto e de reciprocidade… é substituída por uma relação em que predomina, de forma unilateral, a imperiosa necessidade de fazer pelo outro… praticamente sem nenhum retorno pessoal”. Estudos de 2003 com cuidadores de idosos que sofreram acidente vascular cerebral (AVC) destacaram aspectos como o isolamento social decorrente do acúmulo de tarefas, perda do companheiro nas atividades sociais (para os cônjuges cuidadores), distúrbios comportamentais do portador de AVC, alterações no relacionamento da família e de amizades, sendo ressaltada ainda a sobrecarga psicológica, nem sempre exteriorizada, mas que se apresenta com sentimentos de ansiedade, insegurança e medo. Em contrapartida, autores em 2004 afirmam que o cuidador, apesar de vivenciar a sobrecarga, pode experimentar sentimentos de prazer e conforto quando se envolve no cuidar e vê que sua prática tem resultados positivos no tocante à melhora do idoso. Além disso, ao cuidar de um idoso dependente, o cuidador depara-se com o seu próprio processo de envelhecimento e com sua própria finitude.

Problemas no âmbito financeiro merecem destaque, pois estima-se que mais de 14% dos cuidadores desistem de seus empregos para se dedicarem exclusivamente aos seus idosos20 e, por tentarem suprir num primeiro momento as necessidades do idoso, acabam deixando os outros gastos para um segundo plano. Em um estudo realizado em São Paulo, constatou-se que mais de 90% das famílias não recebem auxílio de serviços, organizações ou grupos voluntários/agências particulares, mas que cerca de 30% gostariam de receber ajuda financeira. Pouco se conhece sobre o impacto econômico da dependência do idoso na família e no sistema de saúde associado à falência de nosso sistema previdenciário que transfere todo o encargo econômico do cuidar para a família. Segundo pesquisa com esposas cuidadoras de idosos dependentes participantes do projeto Bambuí em Minas Gerais (estudo populacional associado à necessidade de cuidador entre idosos), foi apontado que as tarefas mais cansativas, e que iam se tornando mais pesadas com a evolução da doença, se relacionavam às mais íntimas, como o banho, a higiene íntima e os cuidados com as feridas.

A dificuldade em lidar com a doença pela falta de compreensão da sua magnitude foi um tema muito explorado em um estudo de 2004 realizado com cuidadores informais de idosos portadores de doença de Alzheimer (DA) em Porto Alegre. Os cuidadores apontaram dificuldades em obter informações para entender e enfrentar a doença de seu familiar. A consulta médica, na maioria das vezes, é centrada na patologia, deixando o cuidador sem a necessária orientação, sendo em casa que o familiar irá aprender “à medida que os problemas vão aparecendo”. Corroborando essa afirmativa, outras pesquisas enfatizam que a grande maioria da população de cuidadores informais no país ainda se encontra sem as informações e o suporte necessários de assistência ao idoso dependente. O sistema de saúde pública nacional não está preparado para dar suporte ao idoso que adoece nem à família que cuida, gerando o aumento da sobrecarga e o estresse. Fica a impressão de que estão ambos esquecidos, cuidador e quem precisa de cuidados, vivendo entre quatro paredes e, ao seu modo, vivenciando a dura realidade da incapacidade funcional numa sociedade que não parece acreditar que está envelhecendo, não cria aparelhos para fazer face ao desafio que representa cuidar de idosos que não envelheceram com saúde.

Fonte: Site da Escola de Enfermagem Anna Nery.

Leia o estudo na íntegra em:  https://www.scielo.br/j/ean/a/VgjTVdg8sHgNWz7gGwDd6dh/

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